Há, em grande parte do mundo, um mal-estar e uma revolta contra o sistema político tradicional, ambos expressos de diferentes maneiras na sociedade. Isso não é novidade e já virou lugar-comum em várias análises sobre a chamada crise da representação. A pergunta que se faz é: como vem sendo e como será a ação das esquerdas diante destes processos?
Os partidos identificados de alguma forma com a esquerda ou com o progressismo falharam em compreender a necessidade colocada por transformação, seja com a manutenção de formas políticas distanciadas e viciadas, seja através do consenso econômico liberal. No Brasil, Dilma Rousseff e grande parte do petismo se negaram a entender 2013 e a presidenta, ao ser reeleita, aplicou um programa de ajuste fiscal de forma oposta ao que anunciava em campanha. Embora ela tenha sofrido um impedimento ilegal, um golpe, não é possível ignorar a rejeição da opinião pública e do eleitorado ao partido e, por tabela, à esquerda brasileira. Nos EUA, a escolha de Hillary Clinton como candidata pelos Democratas foi no mesmo sentido. A opção se deu em detrimento da mudança pela esquerda, representada por Bernie Sanders, mantendo a fidelidade ao “partido de Wall Street”.
Com a recusa das esquerdas no poder em querer ousar, o vácuo da indignação ao sistema vem sendo preenchido pelo surgimento de salvadores, empreendedores e justiceiros, vistos como antipolíticos. Eles seriam os moralizadores, “para além disso tudo o que tá aí”, portadores de uma competência e uma firmeza moral, características ausentes nos representantes do poder, segundo esta perspectiva. Trump, Bolsonaro, Dória, Moro e outros são alguns dos exemplos a serem citados.
Com exceção de medidas pontuais pouco empenhadas, o governo petista subestimou as Jornadas de Junho e o sentimento anti-poder presente na população brasileira e no mundo. A grande mídia, grupos da direita organizada, o judiciário punitivista, as elites econômicas e políticas foram, por outro lado, mais perspicazes. Estes atores conseguiram, de forma contundente, canalizar o ódio a vilões bem desenhados. Primeiramente, contra a inimiga no poder central, representado por Dilma, mas principalmente na corrupção como grande mal, um desvio moral dos políticos e do país. Obviamente, nada pretende ser alterado nas estruturas que permitem a perpetuação da corrupção. Enquanto a Lava Jato faz as suas ações espetaculares, a Odebrecht, por exemplo, ganha “leniência” para continuar a participar de obras públicas e contrair empréstimos, em troca de mais delações, mais bodes expiatórios com as suas cabeças exibidas em praça pública.
Mas, vamos voltar um pouco no tempo. É importante lembrar que desde os anos 90 até os dias de hoje, a crítica em relação à democracia representativa, ao poder do Estado e ao sistema econômico neoliberal é marca de uma série de movimentos sociais, em todo o planeta. Entre estas lutas podemos citar, com inúmeras particularidades, o Zapatismo, o Movimento Antiglobalização (ou Alterglobalização), os Indignados na Espanha, a resistência grega à austeridade, a Primavera Árabe, o Occupy Wall Street, o MPL (Movimento Passe Livre) e as ocupações de escola, no Chile e no Brasil. Com importante participação de jovens, nestas movimentações percebemos uma negação às estruturas hierárquicas e centralizadas, a necessidade de participação, autonomia e expressão e o enfrentamento a um sistema que vem gerando sucessivas crises econômicas, desemprego e cortes sociais.
A esquerda institucional mundial durante estes mesmos períodos, por sua vez, se confortou com o “fim da história” (que combatiam no discurso) julgando ter chegado ao seu paraíso. Embora os avanços alcançados sejam inegáveis, no Brasil e em outros lugares, ela se negou a considerar as possibilidades de retrocessos, revezes eleitorais e golpes. Conformada nos consensos e conciliações, tornou-se cega às dinâmicas sociais, insatisfações e ameaças paralisando-se.
Ao observarmos este quadro mundial, é possível partir do entendimento de que os inconformismos com o sistema vigente partem de raízes semelhantes, mas colocam diferentes soluções. Hoje, no Brasil, o forte sentimento anticorrupção aponta suas flechas contra os políticos, ao menos no discurso. A alternativa posta é a punição e moralização do país. O governo Temer, cercado de escândalos, fracassos e disputas internas, está na berlinda. Os mesmos grupos que tiraram Dilma do poder agora vão às ruas a favor das medidas propostas pelo Ministério Público, contra a corrupção, entre outras bandeiras. Para alguns setores da esquerda, é necessário dialogar com esta indignação de forte apelo popular e colocar em pauta a corrupção. Embora a intenção seja legítima e pressupostos como a necessidade de acabar com as “bolhas ideológicas” sejam verdadeiros, a opção é também perigosa. Primeiramente por insistir nos círculos viciosos, que elegem ações meramente punitivistas e redentoras, mantendo (e mesmo reforçando) formas de reprodução do que se combate. Além disso, a política da moral pode fortalecer as soluções messiânicas futuras, de figuras salvadoras como Bolsonaro.
O mundo, tal como o conhecemos, da “história única” neoliberal e das carcomidas estruturas políticas, está desmoronando. As crises econômicas e de poder mostram que não há mais possibilidade para o acerto de consensos que abriguem estas dimensões, tais como elas se desenvolveram até hoje. Isso não quer dizer que o que virá será melhor. A tendência, até agora, tem sido por soluções que saltam deste status quo centrista pela via da extrema-direita. Num quadro avassalador para todos que lutam por um mundo para além do capital e das injustiças, a tarefa das esquerdas é árdua e com poucas possibilidades de mudança a curto prazo. Contudo, no lugar de planejar somente a próxima manifestação ou a próxima eleição, poderíamos pensar na produção da própria história, que não acabou. Será que vamos continuar colocando como inevitável uma lógica política excludente, onde as decisões estão apartadas das pessoas “reais”? Nos conformaremos com um sistema econômico concentrador, genocida e produtor de miséria? Não voltaremos a apontar as contradições do capitalismo local e global (além de suas conexões), que afetam todo o nosso modo de vida?
Neste sentido, as ocupações estudantis têm mostrado tanto novas propostas de diálogo, auto-organização e fortalecimento dos sujeitos, como resistências ao dilaceramento do “público”. Diferente de outras iniciativas no campo da esquerda, foram os únicos movimentos que causaram alguma preocupação nos grupos recentes organizados da direita. Tanto é que o “desocupa” foi tirado em congresso do MBL (Movimento Brasil Livre), com a participação de membros do governo Temer e figuras importantes do pensamento conservador. O medo está tanto numa disputa pela instabilidade de Temer, mas principalmente pelo reconhecimento de outro projeto societário, numa centelha posta em novas gerações, que escapa ao rolo compressor deles.
Portanto, espalhar nas lutas de todos o país este incômodo, através da desobediência civil, da ação direta e de um repensar sobre as relações de poder, torna-se urgente. Como afirma Leo Vinícius, se “a esquerda no Brasil quer ser relevante novamente um dia, deve começar desde agora a pensar em constituir formas práticas de redes de solidariedade que sirvam de suporte à vida cada vez mais precarizada (…)”. Portanto, agir radicalmente no mundo, produzindo pontes e fortalecer, diante desta crise da economia e do poder, alternativas reais, construídas entre a realidade concreta e a criação do novo, se coloca, desta forma, como possibilidade de transformação. As grandes civilizações caem, mas geram ruínas. Em cima delas, ou através delas, pode-se erguer novas construções. O desafio maior talvez seja que estas fundações apareçam frontalmente diferentes daquelas pertencentes às sociedades que estão implodindo.
Gabriel de Barcelos
Gabriel de Barcelos é doutor em Multimeios pela Unicamp, trabalha atualmente com jornalismo sindical e formação de professores em audiovisual
Comunicação Deputado Federal Rubens Otoni